Vítimas da seca recebem água contaminada em caminhões-pipa

 Um crime contra a saúde de brasileiros carentes! Esse é o tema da reportagem especial do Fantástico deste domingo (1º). Durante dois meses, nós percorremos a região Nordeste, para investigar como funcionam os programas que combatem a seca com caminhões-pipa.

Encontramos tanques imundos, água contaminada e entregas que não chegam nunca. A reportagem é de Wilson Araújo, Alan Graça Ferreira e Maurício Ferraz.

No meio do agreste nordestino, perto de um rio seco, e de famílias que sofrem com a falta d’água, um tanque de combustíveis está à venda. O preço: R$20 mil. “Se for dinheiro, dá pra baixar. Botar em R$17 mil, R$18”, diz o vendedor.

Até um ano atrás, o tanque era usado para estocar álcool e gasolina. A lei manda que um tanque desses, quando esgota sua vida útil, seja incinerado, destruído. Não pode transportar mais nada. Mas dois homens dizem que dá pra carregar água tranquilamente.

“Tanque para combustível jamais pode ser usado para armazenar ou transportar água. Sempre vai causar problema de saúde. Inacreditável a cor da água”, afirma Anthony Wong, toxicologista da Faculdade de Medicina da USP.

Durante dois meses, o Fantástico investigou denúncias graves, envolvendo programas de distribuição de água em caminhões-pipa.

É dinheiro público que deveria atender com dignidade as vítimas da seca. Hamilton Souza, caminhoneiro, do Piauí, conhece bem a água que leva pra população.

“O senhor não tem coragem de beber?”, pergunta o Fantástico.

“Ah, eu não bebo, não. pra falar a verdade, eu compro a água. Eu compro mineral e bebo”, afirma Hamilton Souza, caminhoneiro.

Nossa equipe rodou mais de seis mil quilômetros em Alagoas, Pernambuco, Piauí e Bahia. E constatamos que a má qualidade da água não é o único problema. Os prazos de entrega raramente são respeitados.

“Dia 15, você não entregou. Dia 3, não entregou. Dia 10, você não entregou quase nada de água”, disse o repórter.

Uma mulher concorda que, se viesse água com frequência, quatro vezes por semana, não faltaria. “Se falta água, a gente tem que partir para os açudes. Beber essa água suja dos barreiros”, diz um homem.

O principal responsável pela distribuição de água no semi-árido brasileiro é o Exército, que coordena a “Operação carro-pipa”.

São 835 cidades, em nove estados, totalizando quase quatro milhões de pessoas. Este ano, o governo federal já gastou mais de meio bilhão de reais nesse programa, que conta com cerca de seis mil “pipeiros”, como são chamados os caminhoneiros que distribuem a água.

Cada um recebe do Exército um pagamento de até R$15 mil por mês.

Sem saber que era gravado, o pipeiro, contratado pelo Exército assume que o tanque dele já armazenou combustível e era subterrâneo: ficava debaixo das bombas de gasolina.

Números da Polícia Rodoviária Federal revelam: nos últimos dois anos, já foram identificados 70 caminhões-pipa suspeitos de transportar água em tanques que já armazenaram combustível.

Esses veículos prestavam serviço para o Exército e também para estados e prefeituras.

“O uso dele era de veículo de transporte de combustível. As características, a ferrugem, o desgaste do material, o tipo de corte interno”, afirma Sylvio Jardim Neto, da polícia Federal.

“Nós fizemos um relatório de todo o levantamento e encaminhamos para o Ministério Público”, diz Vera Lúcia Pretto Cella, superintendente da Polícia Rodoviária Federal de Alagoas.

Os tanques subterrâneos de postos de gasolina são geralmente cilíndricos e com divisões internas.

O que mostramos no início da reportagem e está á venda tem capacidade para 20 mil litros.

Encontramos o tanque, ainda com terra, num posto desativado, em Palmeira dos Índios, Alagoas.

Fantástico – Foi desenterrado há quanto tempo?

Dono do tanque – há uns oito meses.

Fantástico – ficou quanto tempo lá embaixo?

Dono do tanque – lá embaixo, acho que foi, mais ou menos, um ano e meio, dois anos.

O homem que negocia o tanque por R$20 mil diz ao nosso produtor que já vendeu outros quatro.

Fantástico – Os caras que compraram os outros foram pra carregar água?

Dono do tanque – Foi pra carregar água. Pra operação pipa, no caso.

Ele fala que, para entrar no programa do Exército, o tanque tem que ser modificado numa oficina.

Nesta, um mecânico nos atende diz como transformá-lo num caminhão-pipa.

“Tem que diminuir ele, cortar ele. Aí, rebaixa ele e ele fica bem rebaixadinho”, conta o mecânico.

Fantástico – Você já fez muito isso?

Mecânico – Já, já.

Com a ajuda da computação gráfica, é possível entender melhor como o tanque ficaria.

Fantástico –  Quanto vai cobrar pra fazer isso pra gente?

Mecânico – Quatro mil ‘conto’.

Fantástico – Quatro mil?

Mecânico – É.

No preço, está incluído um “serviçinho”. Diz o mecânico que é pra tirar as sobras do combustível.

Fantástico – Lava com sabão.

Mecânico – Só sabão?

Fantástico – Sabão com água, né?

O dono do tanque confirma.

“Não sai com sabão, não sai com detergente, não sai com soda e não sai com ácido. Faz parte permanente da estrutura já do tanque”, explica Anthony Wong, toxicologista da Faculdade de Medicina, USP.

Ao saber que se tratava de uma reportagem, o dono do tanque não apareceu mais.

“Você não pode lavar um caminhão e achar que ele está bem. A água vai estar contaminada e não é adequada para o consumo humano”, explica Pedro Mancuso, engenheiro e professor da Faculdade Saúde Pública/USP.

Quem bebe dessa água pode ter diarreia e até câncer.

“Pode provocar tumores em qualquer órgão do corpo: coração, pulmão, fígado  principalmente, baço”, afirma o toxicologista.

Continuação no link: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/12/vitimas-da-seca-recebem-agua-contaminada-em-caminhoes-pipa.html

Fonte: G1

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